Na boca do caixa

Extrato diário da vida de um bancário, direto da Faixa de Gaza.

31.5.06

Vivendo na Faixa de Gaza

Sabem como foi o meu primeiro dia de trabalho? Foi assim: no primeiro dia cheguei uns 20 minutos antes de todos e, enquanto ingenuamente aguardava alguém chegar na sala de auto-atendimento, ouvi as suaves sirenes da Brigada Militar se aproximando. Eis que quando a viatura chega defronte à agência, percebo que dois soldados já empunhavam as armas... apontadas para mim. Os distintos cavalheiros chegaram na porta nervosos e eu abri dando um bom dia, sendo inquirido no ato: Cadê o guarda baleado? Respondi: não sei, cheguei apenas 5 minutos atrás... De fato, dois elementos numa moto tinham dado 3 tiros no segurança que se safou por pouco. Confusão total, polícia para tudo quanto é lado, o gerente olha para minha cara e diz: tu vais ser caixa.
Exatos sete dias após a ocorrência, eu aprendendo o novo ofício, eis que no fim do expediente bancário surgem aqueles clientes que gostam de sacar tudo sem cartão. Estava eu fazendo algo numa sala fechada quando ouço correrias, choros de mulher e aquela agradável intimação: é um assalto! Ligeira contração do esfíncter, pensei cá com meus botões: melhor deitar no chão antes que dê merda. Passados alguns minutos os elementos foram embora sem nem perceber que havia alguém necessitando trocar as fraldas naquela sala...
Nas semanas seguintes várias agências de outros bancos foram assaltadas nos bairros vizinhos. Numa assembléia do Sindicato que participei uns dias depois, fui inquirido em qual agência estava lotado e o Diretor do Sindicato não perdoou: ih, esse aí trabalha na Faixa de Gaza!

25.5.06

O bêbado era eu

Numa tarde absolutamente tranqüila, agência vazia, estava eu com minha cabecinha abaixada fazendo alguma coisa quando aquela senhora surgiu na minha frente. Aparentando uns 50-60 anos, óculos escuros, perguntou se poderia pagar a conta de luz. Aceitei, informei o valor enquanto ela procurava vagarosamente alguma coisa em sua bolsa. Da sua niqueleira, começou a puxar as cédulas amarrotadas, numa demonstração de total descoordenação motora ou visual. Pensei cá com meus botões: a esta hora da tarde e esta senhora já está de pileque... imagina quando chegar a noite.
Ela começou a reclamar do garçom da lancheria onde estava que teria lhe logrado no troco, um assunto clássico de bebum, conjecturava eu. Finalmente ela me entregou aquela massaroca de dinheiro, contei, dei o troco, autentiquei, tudo ok. Me despedi dela e então vi que a minha percepção é que estava de pileque: ao se virar para ir embora, aquela senhora empunhou uma bengalinha própria de pessoas com deficiência visual e, enquanto ela lentamente se dirigia à porta, o babaca aqui procurava um buraco para se enterrar diante de tanta vergonha...

24.5.06

Elas também produzem mais-valia

O sujeito era um simpático cliente, boa pinta, ex-bancário (vejam só), feliz proprietário de um estabelecimento para entretenimento masculino noturno (vocês não querem que eu faça um desenho, né?).
Último da fila, ele dirige-se ao meu colega ao lado e começa a pagar suas contas. Pede para pagar seu IPVA, meu colega consulta o sistema e informa: é tantos reais. Ele conta o seu dinheiro, faz uma careta e murmura: não vai dar, terei que pagar este IPVA na semana que vem.
E arremata, com um sorriso maroto: as meninas terão que produzir mais um pouquinho...

23.5.06

Dando asas à imaginação

Uma das comodidades de se trabalhar numa agência bancária é o conforto térmico, até porque seria a ante-sala do inferno se não houvesse esta mordomia para funcionários e clientes. Durante o verão, principalmente, os aparelhos de ar condicionado estão sempre com carga total, chegando a causar mal-estar o choque térmico proporcionado para quem desfruta do calor senegalês de Porto Alegre.
O choque para os mortais atrás do balcão é de outra natureza. Existem clientes que gostam de usufruir deste oásis de frescor de uma forma inusitada: ao serem atendidos no caixa, eles apóiam seus cotovelos no alto do guichê para dissiparem mais calor, porém, com sua absoluta incompreensão do papel civilizatório do desodorante somada à corrente de ar em sentido contrário, somos brindados com uma acentuada concentração de odores desagradáveis que abalam nossos sentidos.
Às vezes chego a pensar que se trata de uma tática maléfica para causar confusão mental ou obrigar o pobre caixa a acelerar o trabalho, a fim de se ver livre o quanto antes do suplício.

19.5.06

A Mulher Elástico

Esta é um clássico. Uma sexta-feira, milhões de clientes na fila e chega a mocinha simpática, funcionária de uma empresa das imediações, para pagar a folha de funcionários. Dezenas de depósitos no caixa com um cheque da empresa. Somei tudo, bateu valor do cheque, fui pedir autorização ao Gerente, voltei, autentiquei tudo, tchau, tchau. "O próximo da fila, por favor!"
Fim do dia, na hora do espanto, trezentos paus de diferença! Ai, ai, ai, ai, de onde foi isto? Comecei a conferir a fita do caixa ajudado por um veterano e eis que surge um depósito a mais entre aqueles feitos pela empresa. Morta a charada, vamos cobrar o depósito a mais da empresa. Tchau, bom fim-de-semana!
Segunda feira a empresa protestou. Não havia depósito a mais não contabilizado... fomos ver para quem era o depósito e era justamente na conta da mocinha. Cobramos dela, claro. E ela não gostou. Disse que havia dado o dinheiro para o depósito e que Eu havia me enganado. Situação difícil, afinal era a minha palavra contra a dela. Fui salvo por um colega que sugeriu acabarmos com a controvérsia olhando as imagens do circuito interno de televisão. A moça empalideceu e foi embora. Dez minutos depois liga e diz que vai pagar. Aí eu fiquei cheio de dúvida: o que diabos aconteceu para ela mudar o depoimento tão rapidamente?
Nas imagens, o horror. Enquanto eu saía para pegar a autorização para o cheque, a mocinha enfiava o seu bracinho dentro do meu guichê, pegava um maço de depósitos e enfiava um clandestino no meio. Caiu a bunda de todo o mundo.

18.5.06

A Hora do Espanto

Muitas pessoas pensam que o trabalho do bancário termina quando o distinto público deixa a agência. Nã, nã, nã, nã, naninha. Para os caixas, por exemplo, há uma porção de coisas para fazer antes do término do expediente. O problema, na verdade, não é esse. É que trabalhar com o dinheiro alheio exige um grau de concentração incrível pois, ao menor descuido... KRAU! Lá vem uma diferença no teu caixa (que, se não for encontrada, vai parar no teu salário). Então o cara tem que ficar 6 ou 7 horas por dia ligadaço, sem pensar em nada que não esteja relacionado com aquelas rotinas altamente repetitivas. Mas o pior é que, por fim, vem a Hora do Espanto, quando rodamos a rotina que fecha o caixa. Ah, que situação indescritível aguardar aqueles intermináveis segundos quando o computador diz se deu tudo certo ou nos fodemos...

17.5.06

O tacape digital

Desde a década de 80 a Febraban tem planejado o que seria uma agência bancária do futuro: poucos funcionários para clientes VIPs e máquinas para os demais. Em síntese é isto, publicado em prosa e verso pelo Dieese. Algumas agências bancárias chegam a ter estagiários atuando como verdadeiros zagueiros, perguntando na porta: o que você quer? Dependendo do que disser ela te desvia direto para as máquinas.
O problema é que existe um abismo digital na sociedade brasileira onde pessoas, principalmente as mais velhas, têm horror a utilizar um computador ou um terminal de auto-atendimento. Dito isto, quero contar um causo que não presenciei, mas faz parte do acervo da agência.
Um senhor idoso, falastrão-gritão-chatão, cliente da agência que mora numa vila das cercanias, certa feita tentou sacar uma quantia do caixa eletrônico depois do horário de funcionamento bancário e não conseguiu. Irado, foi até a sua casa e retornou à agência com um martelo, detonando o teclado de uma das máquinas e extravasando sua raiva, mas sem levar o dinheiro.

Lidando com pessoas, eu acho

Atender pessoas não é fácil. Você nunca sabe o que terá que enfrentar. Atendo diariamente algumas centenas delas e nunca me canso de ficar surpreso com a falta de civilidade de alguns tipos. Hoje, por exemplo, a agência estava vazia, um dia light eu diria, ninguém esperou mais de 10 minutos para ser atendido. Eis que uma menina aparentando uns 18 anos, com uma criança de colo que presumo seja seu filho, chegou até o meu guichê ensandencida. Problema: ela tinha X na conta e não conseguia sacar exatamente este X nas máquinas. Expliquei que havia a CPMF (imposto de 0,38% cobrado pelo Governo de todos os saques há mais de 10 anos) e ela, quase gritando, histérica mesmo, afirmou que o Banco nunca havia explicado isto a ela (ninguém me disse nada). Dá pra acreditar?
Ela ainda continuou argumentando que no outro Banco ela não era cobrada. Meu colega não se conteve e perguntou qual era este Banco porque, com esta regalia, ele queria abrir uma conta lá também. Resposta educada: não estou falando contigo, estou falando com ele! Com dedo em riste e tudo.
Comecei a rir, afinal, quando a ignorância e a má educação se juntam não há como acabar bem. Atendi rapidamente a menina perguntando-me que educação aquela criança em seus braços terá logo mais.

Começo de jornada

Pretendo lançar diariamente neste espaço um pouco das aflições daquelas pessoas (acreditem - são humanos mesmo!) que vivem a rotina de ser um(a) bancário(a): lidar com as pessoas e os problemas mais estranhos que se possa imaginar dentro e fora de um Banco, afinal, atendemos centenas delas todo o santo dia. Bom proveito.