Na boca do caixa

Extrato diário da vida de um bancário, direto da Faixa de Gaza.

14.9.06

Me dá meus pilas!

Alguns clientes são muito conhecidos na agência. Quer por alguma particularidade sua, quer pela assiduidade (alguns batem ponto diariamente) eles tornam-se mais do que clientes, a ponto de estranharmos quando deixam de aparecer.
Um desses clientes é o que os politicamente corretos chamam de "pessoa em situação de rua" ou "morador de rua". Quando o tempo meteorológico permite, ele pode ser visto dormindo ou perambulando nas proximidades do banco, quase sempre ébrio. Sabemos que ele já teve família constituída, trabalho formal e tudo aquilo que uma pessoa normal têm. Mas, como a maioria das pessoas na situação atual dele, o trago tragou tudo.
Alguém deposita uma quantia suficiente para que ele possa fazer uma refeição regularmente, razão pela qual ele vai ao banco para sacar. Quando ele estava muitos copos além do limite, chegava a encher o saco querendo usar os telefones, falando alto e exalando um aroma muito distante do civilizado. Geralmente chegava ao caixa e lascava: "me dá tantos pilas!" Pegava sua graninha e saía.
Há algumas semanas, quando ele chegou sóbrio, sorrindo, banho tomado e cabelo cortado, pensei que tinha se aprumado e estava retomando a vida. Passou vários dias até aparecer hoje como a antítese da última vez. Pena.
Lembro da primeira vez que o atendi e, como não o conhecia, pedi sua carteira de identidade. Fiquei vários segundos olhando para a foto daquele documento de uns cinco ou seis anos atrás, pensando como um homem saudável, corado e sorridente daqueles poderia se tornar um velho trapo humano em tão pouco tempo...

12.9.06

Pegando no tranco pela manhã

Um caixa não pode trabalhar com sono, é o caminho certo para encher a cabeça de burrice e fazer bobagem. Para despistar o seu Morfeu vale tudo: cafezinho, guaraná cerebral, enfim, qualquer coisa para ativar os neurônios.
Pois hoje, depois de uma noite precariamente dormida, eu vacilei e não recorri à cafeína matinal antes do batente. Seria a desgraça certa se não fosse uma senhora me salvar. Estava atendendo o povo entre um bocejo e outro quando chegou aquela idosa franzina no meu caixa para fazer um depósito. Peguei o dinheiro e o formulário no balcão e fiz o mesmo procedimento de trocentas vezes ao dia. Bocejei e entreguei o comprovante a ela quando levei um susto que quase me derrubou da cadeira: a dita senhora tinha o braço mais cabeludo que eu já vi na minha vida. Cruzes! Nenhuma área capilar do meu corpo é páreo para aquele braço bizarro. Com fios entre 2 e 3 centímetros, dava para fazer trancinhas...
Recomposto, comecei a conjecturar se era o efeito da lua cheia ou ainda como deveriam ser providas, capilarmente falando, outras áreas da distinta senhora.

7.9.06

Quando o dinheiro dá nojo

Apesar de ser meu objeto de trabalho, o dinheiro não gera nenhum sentimento especial no cotidiano. Uma cliente me perguntou certa vez se manusear tamanha quantidade de cédulas não despertaria cobiça ou algo do gênero: disse a ela que para mim era o mesmo que contar pedrinhas.
Na prática o valor do dinheiro vai além do papel pintado que o representa, ele é uma representação de riqueza e, portanto, de trabalho. O curioso é que muitas vezes este trabalho fica impregnado nas cédulas, literalmente. Ontem um funcionário de um posto de combustíveis foi ao guichê da minha colega e podia-se sentir o cheiro de gasolina das cédulas a quase um metro de distância. Já peguei cédulas com cheiro de fritura (lancheria), sujas de farinha ou açúcar de confeiteiro (não quis lamber para me certificar), sujas de graxa (borracharias e mecânicas) e por aí vai. O fato é que depois de manuseá-las e lavar as mãos, vejo quanta água suja sai na pia...
O brabo nem é isto. O que embrulha o estômago é ver certas criaturas lamberem seus polegares ostensivamente ao contar o dinheiro que irão me entregar. ECA!

5.9.06

Vendendo com a corda no pescoço


Toda agência bancária comporta-se, administrativamente falando, como uma filial de uma grande empresa. Como tal, ela possui contabilidade, receitas e despesas próprias, devendo apresentar resultados positivos para continuar funcionando.
Como disse anteriormente, as tarifas bancárias custeiam a folha de pagamento totalmente ou quase. O resto das operações é lucro do banco e, para atingí-lo, eles estabelecem metas a serem atingidas de acordo com o perfil da clientela de cada agência. Existem metas para tudo: seguros de todos os tipos, cheques especiais, cartões de crédito, consórcios, número de clientes, etc. O argumento positivo, quando há, é o de oferecer migalhas de renda variável aos funcionários de acordo com os resultados obtidos.
Felizmente no banco onde trabalho as metas para os caixas são de reduzir autenticações, o que é um contra-senso: minha meta é evitar o meu trabalho. Porém em outros bancos a coisa é diferente. Soube de um banco destes "feito para você" que até os caixas têm metas de vendas. Imagine a cena: o cara vai pagar o financiamento da casa aí o caixa emenda:
- O senhor não quer aproveitar que está investindo no seu patrimônio e fazer um seguro contra incêndio? Imagina ficar pagando sua casa anos à fio e um desastre qualquer acabar com o seu patrimônio?
Ou melhor, o cara vai pagar IPVA aí você lasca:
- Trânsito violento, hein? Se numa viagem destas os seus freios falharem, como ficará a sua família? O senhor tem seguro de vida?
Outra, a estudante vai pagar as passagens escolares e você oferece um consórcio de moto e, se ela aceitar, fala do seguro contra acidentes...
E não é brincadeira, na iniciativa privada quem não atinge metas é metido no olho da rua.