Na boca do caixa

Extrato diário da vida de um bancário, direto da Faixa de Gaza.

11.6.06

Emoções antigas

Recebi esta importante contribuição de um colega de infortúnio, veja só a dimensão histórica do sofrimento da categoria... boa leitura.

Bibliografia: FRANCO, Sérgio da Costa Franco. O caixa e as emoções. Correio do Povo, Porto Alegre, 30 maio 1975.

O caixa e as emoções

Foi uma dessas invenções pouco razoáveis dos administradores de empresa: a beneficio de sua clientela, alguns bancos resolveram criar uma figura de caixa ecumênico ou enciclopédico. Ele recebe e paga, conta dinheiro, confere cheques, verifica saldos, calcula taxas, despacha ordens de pagamento, fiscaliza assinaturas. É o faz-tudo do sistema bancário.

Imagino que essa diversificação de encargos, a exigir grande dispêndio de atenção, seja terrivelmente desgastante. As técnicas da divisão de tarefas, nascidas com o taylorismo, tinham em vista automatizar o trabalho, tornando-o fácil e, em conseqüência mais produtivo. Quando se repete metodicamente os mesmos gestos e as mesmas operações, forma-se no correr do tempo uma linha de reflexos condicionados, que tornam menor o gasto de energias físicas e mentais.
No meu tempo de bancário, um caixa se incumbia apenas de pagar e de receber, praticando um mínimo de outras operações acessórias. Estava livre do balcão, do diálogo com o cliente, das reclamações e das dúvidas. Seu negócio era apenas o dinheiro, o troco, a "reserva", os atilhos de borracha, as cédulas dilaceradas.
Agora, entretanto, vejo o caixa executivo lançado ao torvelinho de todos os dramas humanos do balcão:
Então o patife me aplicou um cheque sem fundos?!
Como é que eu vou passar o mês com cem cruzeiros?
O senhor pode ver se ele já pagou a minha pensão alimentícia?
Já entrou a folha das pensionistas do Correio?
A velhinha alquebrada que vai ao guichê à procura de seu montepio centraliza nele a sua vida: o Banco não faz coisa mais importante que o lhe pagar essa migalha mensal.
A mulher feia e mal amada, todos os meses em busca da pensão alimentícia que lhe paga o marido estradeiro, transfere para o caixa executivo o seu ódio aos varões, se a pensão se retarda ou se desfalca.
Co-responsável pelos atrasos dos devedores, pelas exigências da burocracia, pela parcimônia das pensões, vive o caixa-executivo sob o assalto das emoções feridas. E até não sei como ele possa, sob esse clima tenso, contar e guardar o dinheiro dos outros.